terça-feira, 21 de novembro de 2017

TRITONO: A história não contada - PARTE I



Já indo direto ao assunto, seria o "Trítono" o intervalo musical do Diabo?

Uma dos maiores mitos no ensino da música está relacionado ao intervalo de quarta aumentada (ou quinta diminuta), um intervalo de três tons chamado "trítono" (o intervalo correspondente entre dó e fá sustenido, por exemplo). Este intervalo tem uma proporção de 45:32 e, justamente por isso, é percebido pelo ouvido como uma dissonância. Além disso, foi chamado de "diabolus in musica". E aí é que começa a desinformação.

O diabo é aquele que divide (dia-bolus; o oposto seria sim-bolus, união). Como o trítono é o intervalo que divide a oitava em duas partes idênticas, e ainda é uma dissonância, acabou ganhando essa denominação imagética, uma representação puramente simbólica e filosófica.

Pois o discurso infundado e desinformante que vigora por aí carrega vários equívocos, preconceitos, imprecisões e até mesmo mentiras, as quais serão desvendadas agora. Resta saber se tal desinformação foi plantada conscientemente ou foi apenas uma anedota que ganhou ares de verdade.

A primeira é que "o intervalo de quarta aumentada recebeu o nome de 'diabolus in musica' na Idade Média.

Há sérias divergências entre os autores sobre quando esse nome surgiu. As referências à expressão "diabolus in musica" datam do início do século 18, com Fux, Telemann, entre outros compositores e teóricos. Denis Arnold, no New Oxford Companion to Musics, sugere que o apelido foi aplicado por Guido D'Arezzo, no período medieval. O Dicionário Grove de Música afirma que foi no Renascimento e Grout e Palisca, no História da Música Ocidental, sequer associam o monge beneditino à famosa expressão "mi contra fa est diabolus in musica". De fato, não encontramos referência a essa frase no próprio tratado musical de Guido D'Arezzo, o "Micrologus". O "A Performer's Guide To Renaissance Music", de Kite-Powell, afirma que a frase é uma citação latina e não lhe atribui autoria. Portanto, não é impossível que esse apelido tenha realmente sido cunhado por teóricos medievais, mas está longe de ser uma certeza.

Outra mentira é que o trítono foi proibido pela Igreja durante a Idade Média. O fato é que não há nenhum registro que prove que executar o intervalo de trítono era proibido.
Nas 165 páginas da ata do Concílio de Trento (1545-1563), no qual encontramos reflexões sobre toda a prática religiosa até antão, há apenas um parágrafo bastante genérico que orienta, de maneira subjetiva, a evitar-se as práticas musicais que possam atrapalhar o culto, referindo-se mais em relação à polifonia com dezenas de vozes, que impedia a boa compreensão do texto, do que com questões técnicas e teóricas. Aí também não há absolutamente nada contra o trítono.

"Bandiscano, poi, dalle chiese quelle musiche in cui, con l’organo o col canto, si esegue qualche cosa di meno casto e di impuro; e similmente tutti i modi secolari di comportarsi, i colloqui vani e, quindi, profani, il camminare, il fare strepito, lo schiamazzare, affinché la casa di Dio sembri, e possa chiamarsi davvero, casa di preghiera."

A verdade é que esse intervalo não era executado de maneira regular, pois não havia o costume, o hábito, o uso que foi adquirido com o advento do acorde e, mais tarde, do sistema tonal. A Idade Média musical é caracterizada pela monofonia (apenas uma linha melódica), tal como toda a tradição do cantochão, e por ser o primórdio da polifonia, uma música bastante simples harmonicamente, como os organuns, as salmodias e os discantus.

Ainda assim, existem inúmeros exemplos de trítonos melódicos mesmo em cantos gregorianos (música sacra ritualística!). A grande compositora Hildegard von Bingen (1098-1179), que além de compositora era monja beneditina, mística, teóloga, compositora, pregadora, naturalista, médica, poetisa, dramaturga e escritora e correspondia-se regularmente com reis e papas (malditos medievais machistas!) e os mestres da ars antiqua Leonin e Perotin também escreveram trítonos. Na música de Perotin, muitas vezes o trítono era usado e considerado uma consonância imperfeita, espécie de quinta anômala.
É evidente que o uso do trítono era comedido e as dissonâncias eram tratadas com extrema parcimônia até mesmo na polifonia mais complexa da ars nova, até porque a harmonia vai se tornando mais complexa gradualmente e, com o advento do tonalismo, o trítono então é definitivamente incorporado ao sistema, dentro de sua estrutura acórdica mais essencial: o acorde maior com sétima menor, posteriormente chamado de "dominante".

A pior mentira de todas é a que afirma que "milhares de compositores foram jogados nas fogueiras da Inquisição por tocarem o intervalo de trítono". É inacreditável que muitos professores afirmem isso sem sequer corarem (eu mesmo já o fiz, pois havia aprendido assim).

Mais uma vez, não há nenhum registro histórico de compositor que fora condenado à morte pela Inquisição por tocar um trítono, nem nos livros de História da Música nem nos estudos históricos sobre a Inquisição na Idade Média, como no ótimo "A Inquisição", de Michael Baigent. Os compositores da tradição gregoriana, Hildengard, Perotin, Leonan, nenhum compositor ou instrumentista morreu na fogueira. Isso é vergonhosamente falso, é uma afirmação tão boboca e fantasiosa que chega a ser ridícula. Se durante séculos o trítono foi usado com parcimônia (mas foi usado!), não foi por causa de uma proibição autoritária da Igreja Católica, muito menos sob a cruel punição do coitado do compositor ser lançado à fogueira, mas simplesmente porque não era um elemento estético e técnico efetivamente incorporado ao sistema da época.

Por fim, há um grande equívoco em considerar o trítono um ataque à tradição. O trítono é a própria tradição! Ele é a base da tensão da dominante com sétima, a força motriz do movimento harmônico da tonalidade. 

"O trítono é a pimenta (tempero) de Deus para a música."

Se algum músico medieval lançasse mão apenas de trítonos, ele não seria condenado à fogueira, apenas cairia em descrédito, não seria ouvido, passaria fome e ficaria com a pecha de mau músico. Já na modernidade, vemos alguns compositores usando o trítono indiscriminadamente, alegando que com isso estão "revolucionando" a música, o que faz com que sua música seja ardida e não saborosa, e ninguém a escute, mas ainda assim, estes compositores são tratados como gênios inquestionáveis.
Eu mesmo já ouvi de professores essa história de que se o sujeito tocasse um trítono ele iria para a fogueira, mas compreendi na hora o seu caráter anedótico e não levei a sério. Acontece que, pesquisando na internet, pude constatar a quantidade de publicações que afirmam isso como fato histórico certo e verdadeiro (sem nunca citarem fontes, claro). Os links abaixo exemplificam esse verdadeiro desastre pedagógico do ensino musical brasileiro:
etc, etc, etc...

Já na Wikipedia em inglês (e em outros sites estrangeiros) a história está bem explicada:
http://en.wikipedia.org/wiki/Tritone

Um artigo em perfeita consonância com a tese de que o trítono não era proibido na Idade Média coisa nenhuma é este, de Margo Schulter, no qual ele desvenda o uso do trítono da Idade Média à Renascença, sem dúvida o melhor artigo sobre o assunto: http://www.medieval.org/emfaq/harmony/tritone.html

Ou seja, esse disparate se tornou verdade apenas nas publicações diletantes do Brasil (e em algumas aulas superiores de harmonia ministradas por professores anti-cristãos), por conta de um certo preconceito disseminado contra a Idade Média. O curioso é que esse mito do trítono é usado tanto por militantes pregam contra o rock'n roll, por exemplo. Por isso a desmistificação dessa história é tão urgente. Pelo bem do ensino musical brasileiro, pelo bem da Verdade e pelo bem dos jovens estudantes de música.

Seguindo essa linha de pensamento, você já ouviu essa história: o músico Robert Johnson vendeu sua alma para o demônio. Em troca, ganhou talento e sucesso. A negociação ocorreu em uma encruzilhada no interior do Mississipi – até hoje, garantem crentes e céticos, cruzamentos são um ótimo lugar para fazer comércio com o coisa ruim.
Bem, se o pai do blues fez mesmo a transação arriscada, não adiantou muita coisa. Ele foi um artista itinerante, que andava de cidade em cidade tocando em esquinas, espeluncas e clubes decadentes nos sábados à noite. Pouco foi valorizado como artista em vida, e morreu em 1938, aos 27 anos – segundo a versão mais aceita, após um gole de uísque envenenado por um dono de boteco, que morria de ciúmes de sua esposa e achava que ela tinha um caso com o músico.

O mito de Johnson nasceu, na verdade, em outra encruzilhada, da cultura americana com a cultura alemã: é o mito de Fausto. Na mesma época em que o músico negro – pobre e filho ilegítimo – fundava um dos gêneros mais importantes da música popular dos EUA, o autor alemão Thomas Mann começava a idealizar sua obra-prima: o romance Doutor Fausto, história de um compositor que (adivinha só!) vende a alma para o tinhoso em troca da máxima realização artística.

Ambos são versões, uma erudita e uma popular, da história de um alquimista que viveu na Alemanha no século 15. Dá para passar mais um tempão falando de todas as encarnações do mito fáustico – como o 100% brasileiro Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa – mas não será tão legal quanto explicar o demônio na música do ponto de vista matemático: será que há mesmo algo de demoníaco no blues (ou em qualquer outro tipo de música)?
Um lenda urbana popular entre músicos diz que há, e dá uma explicação 100% matemática para isso. Corre por aí a história de que um determinado intervalo musical, chamado trítono, é o próprio som do inferno, tão dissonante que não podia (por um decreto assinado pelo Papa em pessoa!) aparecer nas partituras de música sacra durante a Idade Média.
Um intervalo musical é, em bom português, uma combinação de duas notas diferentes. Você pode testar vários deles mesmo se não souber tocar nenhum instrumento: vá a um piano de estação de metrô, escolha duas teclas aleatórias (não muito distantes entre si) e toque ambas ao mesmo tempo. Algumas dessas combinações vão soar super bem. Outras, nem tanto.  

O trítono é o intervalo que você ouve na abertura da música Black Sabbath – que está no álbum Black Sabbath, da banda Black Sabbath. Quem achar o metal em questão heavy demais também pode ouvir o trítono no comecinho de Purple Haze, de Jimi Hendrix. Ou na abertura dos Simpsons (ouça as notas mais graves do piano no segundo 0:16). O bichinho aparece até em Garota de Ipanema – mas aí ele dá as caras em uma substituição de acordes que não é tão óbvia, então vamos passar batido.
São todas músicas muito diferentes entre si – e com exceção da do Black Sabbath, nenhuma soa particularmente demoníaca. Isso acontece porque, na música, não existem intervalos do céu e do inferno, só intervalos mais consonantes e intervalos mais dissonantes. Os primeiros são simpáticos e bonitinhos. Os segundos são tensos, criam desequilíbrio. Um usa camisa polo e tênis Lacoste, o outro é repleto de tatuagens. E ambos são úteis em qualquer música.

O trítono, no caso, é um líder punk anarquista. E isso é mesmo culpa da matemática. Acontece o seguinte: você sabe se um intervalo é rebelde ou não olhando as frequências das duas notas que o compõe. Dá para fazer um trítono, por exemplo, com um dó (C) e um fá sustenido (F#). O dó tem 261,6 Hz. O fá sustenido, 369,9 Hz.


Agora é só dividir o maior pelo menor e você chegará a aproximadamente…



Que, você aprendeu na escola, são os primeiro dígitos de um número infinito chamado…


Ou seja: a relação entre as duas frequências é um número tão quebrado que sequer tem fim – um irracional, semelhante ao Pi (π). 
Agora faça a mesma coisa com um intervalo que é consonante, como dó (C) e sol (G), que tem 391.9 Hz. A divisão vai dar um inocente 1,5 (3/2). Um número comportado, com finitude. Uma fração bom moço (por dissonante que soe a discordância de gênero aqui).


Isso é uma regra: quanto mais louco o resultado da divisão, mais o intervalo machuca os nossos ouvidos. Agora vamos fazer um exercício mais maluco ainda: transferir as proporções acima para uma referência visual. No caso, dimensões de folhas de papel.

A folha do trítono parece familiar? Não é coincidência. Acontece que a relação entre as frequências que formam esse tipo de som é exatamente a mesma que rola entre os lados de uma folha de papel A4.
O que deixa no ar uma pergunta: porque esse intervalo, que na forma sonora é tão incômodo, assumiu o formato de uma folha de papel e tomou conta do mundo? A explicação é simples: ele pode ser dividido no meio, e o resultado serão duas folhas menores, mas de proporções idênticas à original. A ilustração abaixo explica bem:


O trítono é o único intervalo capaz de dividir uma oitava (a famosa sequência ‘dó, ré, mi etc.”) em duas partes exatamente iguais do ponto de vista matemático.



E ele também pode ser dividido ao meio mais uma vez: dois trítonos sobrepostos formam um acorde chamado diminuto. Por incrível que pareça, essa dupla não tem o som do apocalipse: dá para perceber direitinho quando um fá sustenido diminuto aparece em What a Wonderful World. Preste atenção em 1:31, momento exato em que ele aparece. Ele nada mais é que uma transição, que empurra a canção para outro acorde, mais estável.


O blues tem uma característica curiosa: todos os seus acordes têm sétimas menores, o que significa, na língua dos leigos, que todos eles carregam um trítono. É isso que dá ao estilo parte de sua angústia característica – nada mais adequado para expressar a dor dos escravos americanos no século 19. Não havia nada de demônio em Robert Johnson, portanto: ele só transformou em música a história de gerações de trabalho forçado.
Outros estilos de música popular, é claro, também têm acordes com um trítono. A diferença é que eles não aparecem o tempo todo.
Quanto à igreja como já comentei, bem, não há registro histórico de que ela realmente tenha proibido essa combinação. De fato, o músico Adam Neely tirou do fundo do baú uma canção de mosteiro do auge do feudalismo em que o dito cujo dá as caras sem medo de ser feliz.
Segundo ele, um dos primeiros registros do termo latino diabolus in musicaaparece só no século 18, pelas mãos do teórico Johann Fux. Ele não se referia ao trítono – na verdade, desaconselhava arranjadores a colocarem duas vozes cantando notas muito próximas entre si (no caso, mi e fá). A razão não era religiosa, apenas prática: além da combinação ser desagradável aos ouvidos em certas situações musicais, também é muito difícil acertar o tom de sua própria nota quando outros membros de um coral estão cantando notas muito próximas.

De fato, o trítono (assim como a segunda menor formada por mi e fá) é um intervalo incômodo de cantar e tem potencial para desafinar, então é mesmo bem provável que ele não tenha sido recomendado por especialistas ao longo da história da música – tudo se resume a um problema técnico, sem participação do tinhoso. Pode tocar Tritono à vontade: você não vai para o inferno (rs)



Colossenses 1:16 "pois nEle foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos ou soberanias, poderes ou autoridades; todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele."

Romanos 1:36 "Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém."

Tiago 1:17 "Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação."



Ps: Continuarei o assunto, relacionando o tal a Escala Pentatônica.



#Tritono

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